Tinha que acabar com aquilo. E era naquele dia. Na mesma livraria onde se conheceram, marcou o café. Não importa o quão linda ela chegasse, iria direto ao ponto. E aí ela chegou. E ele foi:
-Não dá mais.
-Oi?
-A gente. Isso tudo. Acabou.
-Acabou?
-Tem que acabar. Não consigo continuar.
-Mas ontem…
-…foi ontem. Hoje é diferente!
-Mas tudo mudou em 12 horas?
-O que é que tem?
-Me parece rápido demais pra tudo acabar…
-Doze horas é muita coisa.
-Muita coisa?
-Se eu fosse um mosquito, seria uma vida!
(silêncio)
-Acontece o seguinte…
-Ufa!
-“Ufa” o que?
-Achei que não ia dizer o motivo.
-Você vai achar estranho…
-Do jeito que a vida anda…
-Mesmo assim.
-Não ando estranhando muita coisa…
-Vai achar estranho, eu sei…
-Poucas coisas me surpreendem.
-Tem sorte! A Maioria me choca sempre.
-Tenta.
(silêncio)
-Não ia dizer o que aconteceu?
-Estou tentando…
-Esperava outra coisa
-Esperava o que?
-Essa é a livraria que nos conhecemos.
-Sei disso.
-Esperava o amor…
-O amor?
-Algo do tipo.
-Temos 5 anos morando juntos.
-O que isso muda?
-Você já tem todo o amor.
-Não posso ter mais?
-Não é isso…
-É o que então?
-Esquece!
-Quando marcamos com nossa namorada no lugar onde tudo começou, pode ter certeza que ela espera “alguma coisa”.
-“Alguma coisa” eu posso te garantir.
-“Alguma coisa” boa!
-Boa?
-Romântica.
-Tipo?
-Tipo flores, surpresas ou uma declaração de amor!
(silêncio)
-Falando em declaração, você fez seu imposto de renda?
-Entreguei ontem.
(silêncio)
-Se você não vai falar nada, eu vou embora.
-Calma.
-Tenho roupa pra lavar.
-Isso é mais importante.
-Mas eu ainda não sei o que é “isso”.
-Sim, mas…
-E eu tenho a casa pra arrumar
-Você tem câncer!!!!!
(silêncio)
-O que você disse?
-Você tem câncer na quarta casa. Por isso você se preocupa tanto com o lar.
-Você quer me matar?
-De jeito nenhum!
-Quer sim! Me deu um câncer!
-Não dei um câncer. Você já tinha.
-Vamos mudar de assunto? Essa astrologia toda me encheu!
-Mas o assunto é esse
-Astrologia?
-Sim.
(silêncio)
-Estou esperando.
-Meus documentos chegaram!
-Da Itália?
-Sim.
-Finalmente!
-Pois é. Agora vou ter que refazer todos os outros…
-Mas terá a cidadania européia.
-Terei.
-Você queria tanto isso…
-Pois é…
-Parabéns?
-É… em partes
-Feliz por você?
-Em partes, em partes…
(silêncio)
-Podemos caminhar?
-Preferia continuar sentado.
-Eu quis dizer, na conversa…
-Oi?
-Caminhar na conversa. Andar. Mover pra frente…
-Ahhh
(silêncio)
-Seguinte…
-Agora vai
-Os documentos chegaram e eu descobri uma coisa terrível.
-Que coisa terrível?
-Que mudou muito minha vida.
-De ontem pra hoje?
-Pra você ver!
-Que coisa foi essa?
-A coisa foi que a vida toda eu achei que tinha nascido no dia 12 de março.
-Sim…
-E isso foi o norte da minha vida toda.
-O norte?
-Eu era pisciano.
-Você ainda é.
-Não sou! Os documentos chegaram e vi que teve uma enorme confusão.
-Qual?
-Eu nasci, na verdade, no dia 12 de abril.
-E daí?
-Daí que eu sou de áries!
-Isso muda o que?
-Muda tudo!
-Mas…
-Antes eu era de peixes, então era calmo, sensível, artístico…
-Sim.
-Me preocupando com o mundo e precisando de tempo pras coisas…
-Eu sei, mas…
-Adorava ler, ouvir… Gostava do silêncio e era um homem de fé!
-E daí?
-E daí que agora eu sou impaciente, ansioso, irritado. Não tenho saco de esperar nada e muito menos paciência com as pessoas…
-Mas como voc…
-…interrompo as conversas, quero fazer mil coisas ao mesmo tempo e acho tudo isso que a gente fez junto, uma grande bobagem!
(Grande Silêncio)
-Tô sem palavras.
-Agora sou assim. Deixo todo mundo sem fala.
-Desde ontem?
-Desde ontem!
(silêncio)
-Preciso ir. Tenho aula de boxe, depois vou almoçar com uns amigos e vou pra um jogo de futebol.
-Aula de boxe?
-Não sei se vou pra casa, porque conheci uma garota hoje cedo e convidei pra uma balada no centro.
-Balada?
-Já chamei um carreto pra buscar minhas coisas lá na sua casa.
-Um carreto?
-Vou levar só o básico, o resto vou me arrumando.
-Um carreto não cabe nem seus livros…
-Não sou muito chegado em literatura mais…
-Não é?
-Gosto mais de esporte. Preciso ir!
-Mas já?
-Tenho pressa!
-Pro boxe?
-Tchau…
Aliviadíssimo e pensando no mundo de possibilidades que se abriram com essa mudança, decidiu ir a sua primeira aula de boxe a pé para já chegar aquecido. Mal olhou pra trás para evitar saber se sua namorada estaria rindo, chorando ou simplesmente paralisada. Afinal, ela tinha câncer. Na quarta casa. Isso a deixava muito sentimental e, decididamente, um ariano não teria paciência pra isso.