— Quem é Fernando Pessoa, pai?
Tirei os óculos com cuidado. A lente esquerda estava frouxa, e a direita havia trincado após cair de sobre a mesa.
O garoto estava sentado no chão de terra batida da cabana, segurando uma lata em cada mão. Seus “carrinhos”.
— Quem te falou esse nome, Miguel?
— Foi o Álvaro. Ele disse que o pai dele sabia ler, e que tinha um livro escrito por esse tal de Fernando.
— Acho que o Álvaro estava mentindo, filho. O Josias não sabe ler, e livros são proibidos.
O menino sacudiu a cabeça.
— Não – disse ele. – O Álvaro não mente, e me pediu segredo.
— Ele mentiu – respondi.
— O Álvaro não, pai. Ele disse que, se mentir, o Deus briga.
Eu não podia discutir com aquilo. Mentira era punível com o corte da língua. Até mesmo as crianças mais jovens sabiam daquilo.
— Então era apenas uma brincadeira, filho.
— Pai, você não entendeu. O Miguel até me disse um pedaço do livro!
Aproximei-me do menino. Tinha olhos grandes e firmes, a boca apertada numa linha fina. Era bonito, assim como havia sido sua mãe.
— Quer ouvir, pai? Eu decorei.
Fiz que sim.
— “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Viu, pai, como eu sou inteligente?
Um aperto cresceu em meu peito. Senti os olhos cheios d‘água, e a boca seca. Peguei Miguel por sob os braços e elevei-o até a altura de meus olhos.
— Você falou sobre isso com mais alguém?
— Não, senhor! – disse, a boca aberta, os olhos arregalados.
— Não minta, Miguel!
— Eu não minto, pai! O Deus briga!
Abracei-o. Seu coração parecia querer fugir do peito.
— Nunca mais fale sobre isso com ninguém, ouviu?
Ele fez que sim, e começou a chorar.
Coloquei-o no chão, apanhei meus óculos sobre a mesa e saí.
* * *
Cheguei no fim da tarde. Miguel havia dormido sobre o pano grosso que usávamos como cama, mas despertou quando abri a porta.
— Pai? Onde você estava? O que é isso, você se machucou?
— Não, está tudo bem – respondi. – Volte a dormir.
— Mas, pai, esse sangue…!
— Não é nada, filho. Volte a dormir.
— O que tem no embrulho?
— Nada. Obedeça!
Tirei a camisa suja e joguei sobre a mesa. Precisava de um banho, mas só haveria água na manhã seguinte.
Puxei a cadeira até a janela e sentei. O sol se punha, mas ainda havia um pouco de luz.
Abri o tecido grosso do embrulho e, de dentro, retirei o livro. Não havia mais capa, e o papel estava amarelado e frágil.
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Fernando Pessoa. Meu Deus, se eu fosse apanhado com aquilo…
Caminhei até Miguel e beijei-lhe os cabelos, sentindo o cheiro de seu suor. Lembrei de sua mãe, da chuva, e de como o mundo era antes.
Pessoa tinha razão desde o início: Viver? Não é preciso.
Abracei meu filho e, chorando, adormeci.